No dia 14 de fevereiro de 2023 as comunidades cristãs celebram a Quarta-feira de Cinzas, iniciando a Quaresma. Para esse tempo litúrgico, o Papa Francisco apresenta, neste ano, uma mensagem intitulada: através do deserto, Deus guia-nos para a liberdade, oferecendo-nos uma reflexão que em muito pode iluminar a nossa experiência.
Francisco comenta que, ao povo que fugia da escravidão no Egito, Deus se revela comunicando-lhe a liberdade, e também os chama a se decidir por abandonar os vínculos opressivos, e a ter diante dos olhos a terra prometida, para a qual todos devem tender junto.
Quaresma é tempo de graça, de manifestação da força amorosa com que Deus educa o seu povo. E é tempo de acolher o apelo a amadurecer na busca de ir realizando o projeto de Deus na História humana. Tempo de sair das escravidões, rumo à liberdade. Tempo de agem da morte à vida.
Ante a globalização da indiferença, tentação que o próprio Francisco denunciou em sua visita aos refugiados em Lampedusa (08/07/2013), é proposta a pergunta: onde está o teu irmão? (cf. Gn 4, 9). O caminho quaresmal, para ser concreto, supõe querer ver a realidade de opressão sofrida por tanta gente e escutar o seu clamor. Trata-se de deixar-se comover e de mover-se em direção às pessoas e grupos sociais relegados à exclusão e à marginalização. Não podemos nos resignar a um modelo de crescimento que nos divide e nos rouba o futuro, nem permitir que nos impeçam de sonhar, que nos roubem a esperança, considerando imutável a realidade e impossível a construção de um mundo novo.
Deus não se cansa de nós, continua Francisco. Por isso nos convida a fazer da Quaresma um tempo forte de abertura à sua Palavra de Vida, tempo de conversão, tempo de aprendizado da liberdade e da comunhão; tempo de amadurecimento pessoal e coletivo na decisão de não voltar a cair na escravidão, mas de ir vencendo nossas paralisias e nos pôr a caminho, avançando nas veredas da fraternidade. Tempo de educar o nosso olhar para ver na outra pessoa não uma ameaça ou inimigo, e sim uma irmã, um irmão.
É preciso ter olhos para ver a nova humanidade brotando no dia-a-dia da gente simples, em quem se esconde a força silenciosa do bem, do serviço, do cuidado…
A Quaresma faz ressoar em nós o chamado a reforçar a atitude contemplativa, orante, de nos colocar com confiança diante do Mistério divino e dos enigmas de nossa existência. E é igualmente apelo a agir em favor do irmão ferido, caído à beira das estradas desse mundo. O amor a Deus e ao próximo formam um único amor, duas dimensões inseparáveis.
Francisco insiste que “a forma sinodal da Igreja, que estamos a redescobrir e cultivar nestes anos, sugere que a Quaresma seja também tempo de decisões comunitárias”, de pequenas e grandes opções capazes de modificar o cotidiano pessoal e de toda a coletividade: hábitos de consumo, cuidado com a criação, inclusão de quem não é visto ou é desprezado. E dirige o convite a repensar nosso estilo de vida e de avaliar qual tem sido nossa contribuição para tornar melhor o mundo no qual habitamos, e como podemos crescer na solidariedade humana e na proteção de nossa casa comum.
Com criatividade somos chamadas/os a disseminar os lampejos de esperança já existentes ao nosso redor, não temendo afirmar que os sofrimentos presentes no mundo bem podem ser dores de parto.
Quaresma é tempo de conversão, de confirmação e aprofundamento de tudo de bom que já conseguimos realizar, e de mudança das atitudes que manifestam nossa fragilidade e pecado, nosso compactuar com as forças de morte que atuam nos corações, nas relações interpessoais, na sociedade envolvente.
Citando a bela metáfora de Charles Péguy, Francisco conclui sua mensagem dizendo que “fé e caridade guiam pela mão esta esperança menina; ensinam-na a caminhar e, ao mesmo tempo, ela puxa-as para a frente”.
Na Igreja do Brasil, desde décadas, o período da Quaresma é acompanhado pela Campanha da Fraternidade. A cada ano é escolhido um tema. Neste ano de 2024 o convite é para refletirmos sobre a fraternidade e a amizade social (definida como “o amor presente nas relações sociais”, ou “o amor feito cultura”), à luz do pensamento de Francisco, especialmente na Fratelli Tutti. O lema inspirador é “Vós sois todos irmãos e irmãs”. O objetivo geral da CF-2024 delineia o horizonte: “despertar para o valor e a beleza da fraternidade humana, promovendo e fortalecendo os vínculos da amizade social, para que, em Jesus Cristo, a paz seja realidade entre todas as pessoas e povos”.
O texto da CF segue o tradicional método: VER (‘as situações de inimizade que geram divisões, violência e destroem a dignidade das pessoas”), JULGAR (“ILUMINAR pelo Evangelho que nos une como família e resgata o sentido das relações humanas, baseados no respeito e na reciprocidade do bem comum”), e “AGIR para uma mudança, não só pessoal, mas para transformações comunitárias e sociais, em busca de uma sociedade amiga, justa, fraterna e solidária”.
Como vemos, apesar de constituírem um elemento da tradição religiosa cristã, católica, a Quaresma e a Campanha da Fraternidade têm um ensinamento ou um pano de fundo universal, porque toda a humanidade é chamada a se empenhar na esperançosa construção de um mundo mais justo, mais fraterno, mais solidário, mais humano. As últimas décadas estão aí para nos alertar que o mundo novo que desejamos edificar a obrigatoriamente pelo cuidado com toda a criação, com toda forma de vida e com tudo o que contribui para a manifestação da vida em nosso planeta. E dessa tarefa ninguém pode se escusar, colocar-se fora desse desafio comum.
Nesse esforço, cada região do País tem suas particularidades. A vasta extensão da Amazônia e sua imensa diversidade de etnias e culturas nos dão a oportunidade de ofertar ao conjunto do planeta tanta experiência acumulada ao longo de séculos nas práticas dos povos originários, e outras mais recentes nas quais diversos setores da sociedade e o modo sinodal de ser Igreja vêm gestando caminhos alternativos no respeito e na promoção da vida.
Nesse contexto, o verbo “esperançar” se mostra como muito mais do que uma palavra oca, destituída de sentido e de valor histórico.
Porém “esperar” significa todo o contrário de sentar e aguardar que as coisas aconteçam por si. Espera verdadeiramente quem põe o pé na estrada, colaborando ativamente hoje para que surjam e se consolidem, pouco a pouco, as belas realidades que queremos ver resplandecer e se espalhar e florescer e frutificar em todos quintais, no futuro.